Depois das Cinco (Degustação)

Capa do livro: Depois das Cinco

Prólogo

Exausto, ele encarava o próprio reflexo diante de um espelho descascado. Acostumara-se com a rachadura grosseira em um dos lados da superfície vítrea, resultado de um soco furioso que custara a ele dolorosos cortes no nó dos dedos. O homem abatido do outro lado era a imagem perfeita de como ele estava esgotado, em corpo e mente. Com pouco mais de trinta anos, seu rosto descrevia uma aparência mais avançada, consumida e triste. Desistira de manter o jaleco limpo e o cabelo arrumado havia tempos.

A ele interessava apenas resolver um único problema.

Virou de costas e encarou o ambiente. Pousou os olhos no que figurava ao centro. Algo que não se movia. Algo que, embora exibisse um aspecto inofensivo, representava o mais letal dos perigos.

Algo que, embora gracioso, era macabro.

Suspirou com pesar enquanto tomava nas mãos uma folha, anotando suas observações. Mesmo depois de tantas pesquisas, ainda tinha o que documentar, despejando letras e também rabiscos no papel. Toda teoria era bem-vinda, cada fato comprovado era celebrado. Tudo que o orientasse na busca por uma solução era recebido com a mais alta dose de esperança.

Devolvendo a folha para dentro de um caderno, seu registro pessoal mais valioso, deu alguns passos enquanto olhava ao redor. Mirou dois trajes pequeninos, de tons distintos e quase transparentes, pendurados no canto. Sentiu um impulso de chorar. Passeou as vistas por um vaso de barro pequeno em cima de uma das mesas, onde uma rosa de caule tão róseo quanto suas pétalas repousava majestosa. A visão da planta causou nele repulsa e ódio.

Caminhou, com passos arrastados, até ficar frente a frente com o motivo de tudo aquilo. Analisou cada detalhe do que estava diante de si. Perdera a conta da quantidade de vezes que fizera aquilo. Sentia o coração arder de tristeza, percebendo sua impotência diante de algo tão superior a ele.

— Nunca vou perdoar o que você fez.

O que estava na frente dele não reagiu.

Dando outro passo, cruzou o limite que ele impusera a si mesmo. Abriu a boca, mas som algum foi emitido.

Mal pôde perceber quando uma força descomunal atingiu seu corpo.

Não processou as sensações.

Ouviu um zumbido.

Desapareceu.

Capítulo 01

Depois das cinco

Ivana perdera a conta de quantas vezes tinha ficado diante da tela naquela semana. O retângulo branco a encarava, como se debochasse em silêncio de sua falta de inspiração. Era a primeira vez que a menina ficava tanto tempo sem conseguir pintar. Sabia que o bloqueio criativo visitava os artistas com frequência, sequer mandando ao menos um comunicado antes, mas cinco dias e nenhuma pincelada satisfatória era algo inédito em sua vida.

Ficou pensativa por alguns minutos. Faltava algo que Ivana não sabia descrever. O vazio que sentia no peito vinha se tornando frequente nos últimos meses. Aquela sensação germinava de forma lenta e gradativa, ela bem notava.

A menina percorreu com as vistas o rústico e amadeirado ateliê, antes de largar o pincel angular na mesinha de madeira branca, salpicada de manchas coloridas e secas. Bufou com leve frustração enquanto passava os dedos no cabelo comprido e loiro, reforçando suas ondulações de nascença. Demorou a perceber que a tintura rosa, aplicada nas pontas, estava desbotada. Lutou contra a ideia de que todas as tintas do planeta conspiravam contra ela.

— Ah, ótimo, era só o que faltava.

— O que foi? — A voz de uma mulher soou do lado oposto do espaço.

— As pontas já desbotaram, mãe. Mal tem quinze dias que pintei. — Mostrou algumas mechas em tom rosado enfraquecido.

— Você ainda insiste em usar essa tintura caseira com base em frutas silvestres… É isso que acontece. Eu falo, mas você não me escuta, Ivana.

— Eu te escuto, mãe. Só que essa mistura agride bem menos o cabelo. Além disso, eu gosto de caminhar até o lago dos Mil Olhos para colher as frutas. Melhor do que circular pelos corredores daquela farmácia com cheiro de velho do sr. Juarez.

A mãe mudou a expressão, que piorou ao perceber a feição no rosto da filha, e bufou com leve tom reprovador.

— Por que está me olhando assim?

— Na verdade, eu estava pensando em ir agora mesmo colher algumas frutas perto do lago. Ainda está cedo e…

— De jeito nenhum, Ivana. Está louca? O relógio acabou de marcar quatro horas.

A menina, que já tinha visto os ponteiros, checou outra vez o relógio de pulso sem perceber.

— Eu sei, mãe, mas não levo nem vinte minutos para chegar ao lago.

— Vinte para ir, mais vinte para voltar.

— Isso me dá vinte minutos para colher as frutas, dona Solene — ironizou.

— Dezenove, minha filha. Dezenove minutos.

— Que seja, mãe. Vou e volto correndo.

— Não. Não posso arriscar te deixar sair assim, com o relógio ameaçando dar cinco horas a qualquer momento.

— Mãe… o relógio só vai dar cinco horas daqui a mais ou menos cinquenta e oito minutos. Nesse tempo que você está gastando para me convencer a ficar, eu já teria calçado uma sapatilha e saído.

Solene afastou uma mecha loira do rosto. Seu cabelo era igual ao da filha, no entanto sem a adição da tintura colorida nas pontas. Ela olhou para Ivana, contrariada:

— Está bem, mas vai ter que alimentar o Senhor Pipinho primeiro — disse enquanto tirava um alfinete preso à roupa, aplicando-o em um tecido que cobria um busto de manequim.

— Mas, mãe… vai ficar apertado para ir e voltar se eu tiver que fazer isso antes. Acabei de colocar comida em um potinho antes de subir, mas ele não quis.

Ivana sabia que alimentar Senhor Pipinho era apenas uma desculpa que Solene tinha arranjado para que a menina adiasse a ida ao lago dos Mil Olhos.

— É a minha condição — respondeu a mulher, que puxava novos alfinetes para segurar o tecido recém-recortado.

Chateada, Ivana caminhou até a porta do ateliê e saiu pela escada de alvenaria sem corrimão.

— Me avive quanvo fair! — pediu a mãe do lado de dentro, tendo à boca alguns alfinetes.

Apertando o passo, Ivana chegou ao primeiro andar e, passando por uma pequena área coberta e mobiliada, atingiu o espaçoso quintal da casa. Caminhou até uma robusta árvore, onde uma gaiola azul, cilíndrica e envelhecida pendia de cabeça para baixo.

Dentro, uma casinha de madeira pintada em cores vivas e na posição normal estava posta em cima de um amontoado de palha, que se acumulava até formar uma superfície plana. Ao lado, o pote de comida permanecia com os grãos intocados. O bebedouro pendurado na grade conservava-se abastecido. Bastou um assovio baixo, e o pequeno animal apareceu no buraco circular da casinha.

Um pio curto e repetitivo ganhou o ar. O pequenino pássaro esforçava-se para se fazer ouvir. Delicado e redondo, mal deixava as patinhas à mostra. O corpinho, cheio de pintas brancas, tinha uma penugem vermelha que se tornava rosada perto da cabeça, onde um rabisco branco desenhava uma coroa de três pontas.

Senhor Pipinho saiu de onde estava ao perceber Ivana com a palma estendida, depois de a menina ter aberto a portinhola. O passarinho roliço percorreu a pele alva do antebraço direito dela, marcado por uma longa cicatriz que o envolvia do cotovelo ao pulso.

Ivana o acolheu, e ele piou mais alto e feliz. Andando de forma desengonçada, mostrava interesse em subir na menina, que o ajudou, colocando-o no ombro.

— Você continua bem alimentado e contente como sempre — constatou, tal como dissera para a mãe.

Como se tivesse entendido o comentário, Senhor Pipinho sacudiu o corpinho e abriu as asas, uma delas danificada. Arrancou um sorriso de Ivana ao se esfregar em seu pescoço.

— Não posso brincar com você agora, preciso ir até o lago. Fique aí quietinho, eu já volto.

Ivana devolveu Senhor Pipinho que, sem perder a energia, continuou com os pios. Ela deixou o pássaro bebericando a água fresca e olhou para o relógio: tinha perdido quase dez minutos. Tornou a subir a escada que levava ao ateliê, mas parou no meio.

— Mãe, já estou indo.

Com assustadora rapidez, Solene surgiu à porta. Olhava Ivana de cima a baixo.

— Você sabe o que eu acho, né? Falta pouco para as cinco.

— Se dependesse de você, não faria passeio nenhum.

— Não é verdade, minha filha. Sou sua mãe, não uma monstra sádica. — A aflição na voz era percebida com facilidade.

— Mãe, vai dar tempo. Além do mais, se passar do horário…

Nem pense nisso, Ivana.

A menina não respondeu. Não quis correr o risco de contrariar a mãe e acabar sendo proibida de sair. Ivana sabia que Solene aproveitaria qualquer chance de mantê-la em casa.

— Você sabe o quanto me preocupo com você.

— Sei, mãe, você diz isso umas trinta vezes por dia.

— É para você não esquecer.

— Não dá para esquecer, mãe. — Ivana sorriu. — Sei que você só quer o meu bem.

— Quero o seu bem sempre, Ivana. Entendeu, minha filha? Sempre. Província de Rosedário é pequena, e o que mais tem em lugares pequenos é gente fofoqueira. Não quero saber de você exposta, andando para cima e para baixo, e caindo na boca desse povo.

— Pode deixar, mãe. Posso ir agora?

— Pode.

A menina deu as costas para Solene e tornou a descer os degraus.

— Ivana…

— O que foi, mãe?

— Antes de ir, cite as três recomendações.

— Mãe… — A menina bufou, contrariada. — Estou perdendo tempo…

— As três recomendações, Ivana.

— Nunca estar na rua pouco antes das cinco da tarde ou pouco depois das cinco da manhã.

Solene acenou, encarando a filha e esperando pelas outras duas respostas.

— Tomar cuidado com a chuva sombria — a menina disse, inclinando a cabeça ao mirar um céu azul e limpo de nuvens. — Ela não vai cair hoje, mãe. Não cai há quatro anos.

— Não importa, o clima muda a todo momento. Fique atenta. Qual é a recomendação que falta?

— Não me aproximar da mansão dos Casanova.

— Em hipótese alguma, minha filha.

— Nem se eu precisar me abrigar da chuva sombria?

— Nunca.

Citar as recomendações era algo constante no dia a dia da menina. Ivana sempre quis perguntar à mãe por que se aproximar da casa de alguém — ainda que não fosse a casa de uma família qualquer da província — poderia ser pior do que ficar vulnerável à chuva sombria, um fenômeno que atingia a região sem periodicidade ou prévio aviso. Preferiu ficar quieta e não gastar mais tempo.

Os minutos pareciam avançar com mais ferocidade que de costume. Ivana apertou o passo, mas foi interrompida por Solene outra vez.

— Está vestindo a segunda pele?

— Você sabe que eu só tiro em casa e para lavar, mãe.

— Pode ir, então. — A voz sofrida não era disfarçada. Ao contrário, era um artifício que Ivana conhecia bem.

— Prometo que não demoro.

— Preferindo não manter contato visual, Ivana se apressou ao cruzar o quintal de casa e ganhar uma das ruas de pedra que compunham quase todos os caminhos da província.

Tornou a olhar para o relógio, e seu caminhar virou uma leve corrida. A brisa que se chocava contra o corpo disfarçava o calor atípico daquele dia. Teria que colher as frutas com pressa chegando ao lago dos Mil Olhos e nem poderia dedicar alguns minutos a admirar a paisagem, ou mesmo dar um mergulho breve e refrescante. Afastou o pensamento e continuou pelas ruas e pelos becos de pedra, cercada de construções de igual aspecto.

Cruzou a praça principal, ignorando algumas pessoas que conversavam com alegria. Tentou evitar qualquer uma que pudesse bloquear seu caminho. Havia uma corrida tensa contra o tempo para executar a simples tarefa de colher as frutas. A sensação de urgência para algo tão banal causava em Ivana um terrível sentimento de estar presa que, apesar de constante em sua vida, nunca deixava de ser desconfortável.

Ela tomou uma das ruelas na direção oposta ao centro da província, afastando-se rumo ao lago. Não demorou muito para as pedras irregulares do chão se mesclarem com a terra, e depois com a grama rasteira, indicando o início da área que buscava.

Ivana tirou as sapatilhas a fim de sentir a textura do solo e deixar as pedrinhas rolarem por entre seus dedos, fazendo cócegas na sola dos pés. Mesmo o uso da segunda pele não a impedia de sentir as impressões externas, como se estivesse nua. Com os calçados nas mãos, adentrou a área do lago pisando devagar, sentindo a relva ganhar extensão e altura.

A menina atravessava um dos caminhos de terra que levavam ao silencioso e respeitoso lago. Quando árvores começavam a se emaranhar pelo trajeto, era sinal de que a margem estava próxima.

Esbaforida, outra vez olhou o relógio de pulso: quatro e meia da tarde. Havia batido seu recorde. Tinha vinte e nove minutos para colher as frutas e retornar para casa em segurança.

Ivana se assustou e, por reflexo, se escondeu atrás de uma das grandes árvores que cercavam a margem do lago. O espelho d’água estava como de costume: belo, majestoso e tranquilo — poderia com facilidade cegar algum desavisado, visto que o sol era refletido com agressividade em boa parte da superfície.

Em geral era preciso observar com grande atenção para encontrar uma única ondulação na água, mas, esgueirando a cabeça, Ivana notou um trio de jovens nadando e se afastando cada vez mais da margem. Figuras que ela conhecia e detestava, colegas de turma: Malina, Valentina e Alonso. Pessoas excelentes para se evitar.

Os três se moviam devagar, passando por trás de uma enorme cabeça de estátua inclinada que emergia da água, deixando uma parte do queixo e o pescoço submersos. De traço masculino, a escultura possuía cabelo encaracolado e um olho esculpido na testa, além dos olhos comuns da face.

Ivana notou à margem que as roupas de Malina, Valentina e Alonso estavam jogadas. Preferindo não ser vista, deu a volta pelo tronco grosso que a camuflava e adentrou com cautela os arbustos que frutificavam em alimentos silvestres. Ajoelhou e só quando puxou a primeira framboesa percebeu que havia deixado em casa sua bolsinha de pano, usada para guardar as frutas colhidas.

Usando a barra do próprio vestido floral, começou a pegar as frutas, fazendo da roupa uma cesta improvisada. Não precisaria de muitas. Além do mais, o tempo não permitiria angariar tantos frutos.

De olhos na pequena colheita e ouvidos nas braçadas dos três pelo lago, Ivana juntou o suficiente e ficou de pé. Com assombro, percebeu que havia deixado as sapatilhas ao pé da árvore que servira de esconderijo.

Voltou, pé ante pé, até recuperar os calçados. Tentando se equilibrar entre segurar as frutas escarlates com a barra do vestido e colocar as sapatilhas, percebeu que o trio havia desaparecido. Forçou a vista, mas não viu sinal de nenhum deles. Ivana sabia que Alonso tinha o hábito de nadar no lago e que, no geral, um ou outro morador fazia o mesmo, incluindo Malina e Valentina. Sabia também que era um hobby dos mais jovens nadar até os limites da província, no entanto, sem nunca os cruzar.

Não havia nada de errado em três jovens se divertirem no lago, mesmo que fossem três seres humanos desprezíveis. Mas Ivana não conseguiu negar a aflição de mirar a água lisa, sem qualquer sinal de movimento. Talvez estivessem explorando o fundo do lago, segurando a respiração por mais tempo. Ela própria fazia aquilo vez ou outra, embora mais perto da margem.

Repetiu para si mesma que eles estavam bem.

Mas não se convenceu. Gastou minutos preciosos observando a vasta paisagem. Andou de um lado a outro, esticando o pescoço, ficando na ponta dos pés, tentando alcançar novos horizontes, porém nada adiantou. Ivana nem percebeu que as frutas colhidas já haviam caído no solo, deixando só manchas no vestido. Quase gritou o nome deles, mas se conteve.

Ela tremeu ao considerar a possibilidade de chamá-los. Pensou em entrar no lago e procurar pelo grupo, mas fez um gesto negativo com a cabeça, supondo ser uma grande loucura. Não gostavam dela. Forçou a vista para enxergar a cabeça da estátua, porém nem assim os via.

Naquele momento, tinha esquecido por completo de seu cronômetro e de sua necessidade de voltar para casa. Só quando o próprio vestido se desprendeu do corpo e tocou o chão que Ivana se deu conta de que havia atingido o horário fatídico.

Cinco da tarde.

Seu corpo não era mais sólido.

Acabara de entrar em um processo de dissipação.

O pânico tomou conta da menina. Ainda que estivesse coberta pela segunda pele, e que o revestimento atípico deixasse seu tórax e quadris embaçados, era quase como se estivesse nua. Por perder a solidez, nada que era material se mantinha sustentado ao corpo. Logo, além do vestido, relógio e sapatilhas estavam no chão, enquanto Ivana era uma menina perdendo opacidade a cada minuto em um traje que imitava o tom de sua pele.

Por instinto, abaixou para pegar o vestido, as frutas, o relógio e as sapatilhas, mas suas mãos passavam pelos objetos como as de um fantasma.

— Droga… Droga! Preciso sair daqui. Minha mãe estava certa, não posso fazer isso, não posso. Por que eu não dei ouvidos, por quê?

Desorientada, ficou de pé, olhando para as mãos e os antebraços. Via através dos membros a paisagem ao redor. Tinha até às cinco e cinquenta e nove para estar em casa; às seis, teria sumido por completo. Deixaria de existir, como acontecia todos os dias naquele horário. Outro pensamento a encheu de pavor: teria que voltar para casa da forma mais discreta possível, para que ninguém na província notasse sua presença naquela condição.

Ouviu um barulho de água e temeu o pior: o trio estava de volta à superfície e nadava com grande empenho em direção à margem. Alonso estava bem mais afastado das meninas, mas levaria poucos minutos até os três atingirem o ponto em que Ivana estava.

Correndo, a menina atravessou uma das árvores e se agachou entre os arbustos. Deu passinhos curtos e só parou quando estava mais afastada do local. Pensou no vestido e em seus acessórios jogados pelo chão e ficou apreensiva com a possibilidade de o trio descobrir seus pertences.

Espiou por cima da mata e viu, minutos depois, os três de volta à margem, fazendo movimentos para retirar o excesso da água. Mãos pelo cabelo, para a frente e para trás, dispersando os respingos.

Ivana se acalmou ao perceber que nenhum dos três havia notado suas peças de vestuário não muito distantes deles. Agradeceu por estarem tão entretidos com algo que ela não sabia o que era, mas que causava euforia nas meninas. Apesar da curiosidade, se levantasse, havia uma grande possibilidade de ser vista, e ela não poderia ser vista de forma alguma naquele estado. Optou por continuar agachada e esperou por longos dez minutos.

O tempo estava correndo, e Ivana cada vez menos opaca. Nem mesmo seu relógio estava mais por perto para ajudá-la a calcular quanto tempo tinha para voltar sã e salva para casa. A imagem de Solene veio em sua mente, advertindo-a, o que apenas serviu para intensificar o nervosismo.

O céu ganhava o tom róseo-alaranjado característico dos fins de tarde: quanto mais a noite se aproximava, mais Ivana sumia. A menina levou as mãos ao rosto, mas não conseguiu tocá-lo. Naquele momento, ela era apenas uma versão fantasmagórica de si própria.

Espiou o trio outra vez e notou que os três não estavam mais lá. Vasculhou por segundos os arredores e os encontrou ao longe, seguindo em uma direção oposta à sua. Tomando fôlego, Ivana se levantou com um tranco. Faltavam poucos minutos para sua total dissipação, e apenas um milagre poderia ajudá-la a chegar em casa antes do sumiço completo. Virou-se para dar impulso e correr o mais rápido que podia.

Deu de cara com outro menino, metros à frente.

Ela sentiu o coração dar um salto de pavor, seus olhos se arregalaram. Ivana nunca o vira.

Um completo desconhecido.

Cobriu o busto e cruzou as pernas de forma desengonçada e constrangida, ainda que a segunda pele não deixasse qualquer parte íntima de seu corpo exposta. Mas percebeu que ele também estava desnudo. Olhando melhor, ele também usava uma segunda pele.

O menino a encarava com a mesma surpresa, era possível notar em seus olhos cor de anil. A pele negra e fosca exibia sardas no rosto, que brilhavam como estrelas em um céu limpo e salpicado. Ivana sentiu o coração amornar e depois, de imediato, acelerar.

O menino também era translúcido.

Estava bem mais opaco que ela — que já estava quase invisível —, mas ainda assim permitia-se ver a natureza através de seu corpo. Os lábios dela se moveram ao mesmo tempo que os dele. Queriam, precisavam dizer algo. No entanto, sem que Ivana soubesse, o ponteiro do relógio marcou seis horas.

Os olhos profundos daquele menino foram a imagem final que ela registrou.

Seu coração vibrou uma última vez, em uma batida forte, antes de seu corpo dissolver-se por completo no ar.

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