Me encontre no lago

(capítulo extra)
Capa do livro: Me encontre no lago

Capítulo bônus: O Eterno 14 de junho

Carley Fortune

Tradução Lígia Azevedo

O eterno 14 de junho

Will

14 de junho, dez anos antes

 

Segurei a porta do Sneaky Dee’s para Fern, que me olhou com a testa franzida. Ela fazia bastante aquilo. Havia apenas dez horas que nos conhecíamos, mas eu seria capaz de desenhar sua expressão de memória. As sobrancelhas claras espremidas sobre os olhos cinza. A cabeça inclinada em estranhamento, sempre para a direita. O nariz daria trabalho. Eu tinha dificuldade com narizes, e o dela era dos bons. Pequeno e redondo, ligeiramente arrebitado. Fofo. Era a palavra certa. Uma palavra que eu nunca diria em voz alta, por dois motivos: primeiro, porque já sabia que Fern odiaria ouvi-la sendo usada para descrever qualquer parte sua; segundo, porque eu tinha namorada. Comentar como era fofo o nariz de uma mulher que não era ela seria muita sacanagem.

Por outro lado, o dia todo começava a parecer muita sacanagem. Eu vinha tentando arranjar um jeito de passar mais tempo com Fern desde o momento em que ela me entregara um latte com uma samambaia desenhada na espuma e quatro saquinhos de açúcar. Havíamos passado a tarde toda e o começo da noite conversando enquanto passeávamos pela cidade, e eu não estava nem perto de querer parar. Fern era uma mistura fascinante de qualidades contrastantes. Ao longo de uma única frase, podia passar de reservada a aberta, de pretensiosa a pragmática. Ela me provocara porque eu estudara arte, depois chorara na galeria. Aquilo me deixava zonzo.

Assim como meu desejo de continuar fazendo com que Fern franzisse a testa e sorrisse e risse até lágrimas rolarem por suas bochechas enquanto tomávamos gim-tônica no bar em Kensington Market. Eu não me sentia daquela maneira em relação a outra pessoa desde Catherine Reyes, no oitavo ano. Como sou um cara alto com um rosto razoável, bons modos e a capacidade de ouvir e depois fazer perguntas sobre o que fora dito, eu nunca precisei me esforçar muito com as mulheres. Não entendia bem que graça eu tinha, mas ela não me passava despercebida. Em menos de sessenta segundos, ficara nítido para mim que altura e uma decência mínima não seriam o suficiente com Fern. Eu sentia uma necessidade intensa de conquistá-la.

Fiz um movimento com o braço para que ela entrasse.

— Você primeiro.

—  Sou capaz de abrir uma porta sozinha, como deve saber. — Fern retrucou, franzindo ainda mais a testa e inclinando ainda mais a cabeça para a direita.

Uma coisa que eu já tinha aprendido sobre as caretas de Fern era que elas só comunicavam desdém de trinta a quarenta por cento do tempo. Eu estava quase certo de que a de agora indicava que ela estava achando graça, mas não ia permitir que eu soubesse disso. Também estava quase certo de que uma ou duas das expressões que Fern me dirigira antes significavam que ela estava meio que a fim de mim, porém não ia permitir que eu soubesse disso também.

— Por que abriria, quando tem um homem robusto aqui pra fazer isso pra você?

Quando eu era pequeno, minha avó me dava longos sermões sobre a importância de segurar portas para os outros, de ter um aperto de mão firme e de ceder meu lugar no trem a grávidas e idosos. Agora era algo que me vinha naturalmente.

— Robusto?

Fern franziu a testa, depois passou por mim.

Cometi o erro de inspirar fundo. O cheiro dela era incrível, de pele quente e jardim.

— Intimidadoramente robusto — falei, entrando atrás dela. Fern me olhou por cima do ombro.

— Não achei que um único gim-tônica fosse fazer efeito em alguém do seu tamanho. — Ela me avaliou da cabeça aos pés tentando reprimir um sorriso, outra coisa que fazia com frequência. — Mas você só pode estar bêbado.

Ergui as mãos na mesma hora.

— Também posso ser superarrogante.

Uma risada escapou dela, e adorei o som tanto quanto adorei tê-la surpreendido.

— Talvez as duas coisas — Fern concluiu.

Ela foi ao banheiro, para “tentar tirar o grude da cidade da pele”, e peguei a última mesa disponível, louco para aproveitar meu tempo sozinho e fazer aquilo que provavelmente seria a maior sacanagem do dia, mas que precisava ser feito. Ia terminar meu namoro. Naquele instante. Por mensagem.

Fazia cinco meses que Fred e eu estávamos juntos, e eu duvidava que continuaríamos juntos dali a cinco meses. Na semana anterior, eu a havia pegado aos beijos com o cara com quem eu morava e ela fizera um longo discurso sobre monogamia e patriarcado, não exatamente se desculpando, e sugeriu que discutíssemos a possibilidade de abrir nosso relacionamento depois da minha viagem a Toronto. A coisa toda nem me incomodou muito. Eu deveria ter terminado tudo na hora.

Espero que não seja totalmente inesperado, mas…

Uma mão pousou no meu ombro.

— William Baxter. Que bom ver você, cara.

Sem terminar a mensagem ou enviá-la, deixei o celular de lado e me levantei para abraçar Eli. A gente se conhecia desde o ensino fundamental, mas eu nunca havia ido a um show dele. Já tinha me mudado para o outro lado do país quando Eli montou sua banda, The Mighty Mighty Kurt Tones, e nunca me dera ao trabalho de ir a um show quando visitara Toronto. Provavelmente não o faria aquela noite também, mas precisava de uma desculpa para prolongar o dia com Fern. Convidá-la para jantar se pareceria demais com um encontro.

Eli se sentou ao meu lado no momento em que notei Fern no outro extremo do salão. Ela havia feito algo com o cabelo. Era curto e platinado, e Fern mexia nele o tempo todo. Agora parecia mais bagunçado, meio úmido e muito sexy. Seus lábios cintilavam, cor-de-rosa. Os olhos de Eli seguiram os meus. Fern acenou.

— Porra — Eli disse. — Se deu bem, hein?

Não tive tempo de corrigi-lo, porque Fern chegou. Era possível que eu não odiasse o fato de ele pensar que estávamos juntos. Apresentei os dois e Fern se sentou no banco à nossa frente. Pedimos um jarro de cerveja e nachos.

— Você mora em Toronto, Fern? Ou também é de Vancouver? — Eli perguntou.

— Ah, não. Sou daqui. Moro só a algumas ruas de distância.

Ele apontou para mim com a cabeça.

— E o relacionamento a distância está funcionando? Moro em Liberty Village, se não estiver.

Eli piscou para ela. O filho da puta.

— Ah, não — ela disse, com os olhos arregalados, apontando para si e para mim. — Não somos um casal. Nem um pouco.

Dei risada.

— Será que eu fico ofendido? A ideia pareceu meio repulsiva pra você.

— Eu ficaria — Eli disse, sorrindo. — Ela está com cara de quem comeu marisco estragado.

Comemos, bebemos e conversamos, e Fern riu das (muitas) piadas de Eli. Eu tinha me esquecido de algo sobre ele, que voltou e me atingiu com tudo, como um bumerangue na testa: Eli era confiante como um músico bonitão. Porque era um músico bonitão. Eu deveria ter convidado Fern para jantar mesmo.

Eli inclinava o corpo na direção dela, com um sorriso reluzente no rosto, enquanto Fern explicava em detalhes sua teoria de como preparar os nachos mais crocantes possíveis. Pelo modo como ele olhava para Fern (como se ela fosse uma deliciosa porção de nachos), eu soube o que estava prestes a acontecer. Foi como se testemunhasse um acidente de carro em câmera lenta.

Ele levou a mão ao peito.

— Fern? Eu sei que a gente acabou de se conhecer, mas acho que você é minha alma gêmea. Quer casar comigo?

Meu estômago gelou quando ela soltou uma risadinha.

— Ou só sair uma vez? — Eli insistiu.

O filho da puta.

Fern balançou a cabeça.

— Olha só — ele prosseguiu. — A gente mora do mesmo lado da cidade. Você é muito linda, e eu sou razoavelmente talentoso na cama. Tenho um trabalho legal, moro sozinho e toco sax superbem. A gente tem um amigo em comum, que pode confirmar tudo isso. Você não tem por que recusar.

— Não é você, de verdade — ela disse.

— O que você quer? Eu posso reservar uma mesa em um lugar legal.

Ela voltou a balançar a cabeça.

— Fern, não faz isso comigo. E um café?

Eu estava olhando feio para Eli, prestes a mandar o cara dar um tempo, quando ouvi Fern dizer:

— Desculpa. Tenho namorado.

Meus olhos correram para ela. Namorado? Fern não havia mencionado um namorado. Seria mentira?

— Eu sinto que você está inventando — Eli disse, depois se virou para mim. — Ela está mesmo fora do mercado?

Mantive os olhos fixos nos olhos de Fern. Ela estava me encarando quando disse:

— Estou, sim. O nome dele é Jamie. A gente está junto faz quatro anos.

Meu cérebro apagou. Era sempre assim: primeiro, um entorpecimento da mente, então ela voltava à vida gritando, com pensamentos demais, girando, espiralando, com minha cabeça a toda.

Eli teve que subir para se preparar. Mal consegui dizer “bom show” antes de fugir para o banheiro.

Fui direto para a pia, abri a torneira e enfiei a cabeça embaixo da água gelada. Estava bravo e confuso. Tinham mentido para mim. Eu não sabia por quê. E odiava a verdade. Fern havia falado de sua mãe, sua melhor amiga e um monte de outras coisas pessoais que deveriam incluir um namoro que já durava quatro anos. Certo? Ou eu não tinha motivo para ficar chateado? Ela não me devia nada. E eu morava em Vancouver, pelo amor de Deus. Queria ir embora e nunca mais vê-la; queria lhe dar um beijo e pedir que ela terminasse com o namorado de longa data para irmos juntos para a casa dela.

Eu precisava me recompor. Precisava organizar meus pensamentos. Quando era adolescente, costumava reprimi-los xingando e brigando. Mais velho, experimentei beber, mas só funcionava até o dia seguinte, quando tudo só piorava. Sexo ajudava. Mas estava fora de questão.

Eu precisava andar.

Podia pegar minha mochila, me despedir de Fern e ficar andando pela cidade até não sentir mais os pés.

Porém não ia fazer aquilo. Não podia deixá-la.

Repassei o dia mentalmente. Talvez Fern tivesse insinuado que não era solteira. Talvez tivesse mencionado um namorado quando eu estava distraído, olhando para o pescoço dela. Mas eu sabia que não era o caso. Ela havia mentido. E, em meio à enxurrada de perguntas que meu cérebro fazia, eu precisava descobrir o motivo.

Passei as mãos pelo cabelo, respirei fundo e voltei. Quando me sentei diante de Fern, ela pareceu tão aliviada que achei que aquela era minha resposta. Havia duas doses de uma bebida escura na mesa.

— Olha — Fern disse, mas eu não queria ouvir. Precisava não ouvir. Precisava não pensar.

Ergui meu copo e aguardei que Fern fizesse o mesmo com o dela.

— Saúde.

Viramos nossas doses, então me levantei e lhe ofereci a mão.

— Vamos dançar, Fern.

O andar de cima já estava lotado, e a banda começava a subir no palco. Peguei a mão de Fern e a puxei pela multidão mais para a frente, até que ela parou. Eu me virei. Sua testa estava franzida outra vez.

— Volto em um minuto.

Minha altura me permitia ver por cima da massa de corpos, então fiquei observando enquanto Fern voltava até onde nossas coisas estavam e desabotoava a camisa. Pisquei. Engoli em seco. Pensei que talvez fosse melhor desviar o olhar. Mas não fiz isso. Fern estava com uma regata branca por baixo, e quando voltou ficou torturantemente claro que usava sutiã preto. Uma das alças caía do ombro, e senti um impulso de enganchar um dedo nela para colocá-la de volta no lugar. Fern ficou na ponta dos pés e aproximou bem a boca da minha orelha.

— Você devia ter me avisado do nome antes que eu conhecesse o Eli.

— Por que você precisaria de aviso?

Fern não respondeu, mas eu havia notado que ela quase rira quando Eli dissera “Mighty Mighty Kurt Tones”.

— E você nunca nem ouviu a banda — ela disse, levando uma mão ao meu punho e se inclinando na minha direção.

Seu peito roçou no meu braço. Mantive os olhos no palco. Fern prosseguiu:

— Você trouxe uma esnobe musical de carteirinha para ver o que pode muito bem ser o pior show do mundo. Quanta ousadia, Will Baxter.

Fern apertou meu pulso, e eu virei o pescoço na direção dela. De repente, ficamos cara a cara, mais próximos do que em qualquer outro momento do dia. Ela ergueu as sobrancelhas, com um sorriso meio sarcástico se insinuando em sua boca. Sua boca cintilante. A qual eu encarava.

Você devia terminar com seu namorado.

Senti as palavras na ponta da língua, prestes a sair. E por que não?

Continuei olhando para Fern, e ela continuou olhando para mim. Abri a boca para falar, mas a banda começou a tocar “Smells Like Teen Spirit” e o caos irrompeu, com todo mundo pulando e se acotovelando feliz. Fern abriu um sorriso largo como até então eu não havia visto.

Pior que eles são bons — ela gritou.

Entrelacei meus dedos com os de Fern e a fiz dar um giro. Quando ela me disse que não sabia dançar, garanti que ela sabia, sim. Levei a outra mão à sua cintura.

Fern dançava mesmo muito mal, o que só me fazia gostar ainda mais dela. Giramos e rimos, e a tempestade na minha mente se acalmou. Sempre que Fern pisava nos meus pés, eu a puxava um pouco mais para perto, até que um cara deu um esbarrão nela e a jogou direto para o meu peito. Fern olhou para mim com o corpo apertado contra o meu. Antes que ela se afastasse, peguei suas mãos e as coloquei no meu pescoço. Nossos corpos suados permaneceram colados. Eu não tinha um plano. Só não queria deixar de tocá-la.

— Só pra constar, não sei dançar nadinha — Fern disse.

Desci as mãos por suas costas, parando nos quadris. E, como eu não estava pensando, planejando ou me preocupando com o que aconteceria a seguir, falei:

— Você está perfeita.

Ela parou e ficou me encarando. Então voltamos a dançar.

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Capítulo Bônus

Olá